Sons se tornam música. Incorporam expressividade, fazendo brotar impressões, climas, sensações e emoções. Sugerem ansiedade ou monotonia, hesitação ou completude. Escolhas na organização dos elementos sonoro-musicais determinam o caráter expressivo e a articulação estrutural de uma peça. Por exemplo: graus conjuntos (notas vizinhas) produzem uma sensação espacial e psicológica diferente de saltos imprevisíveis, assim como variações de registro (grave ou agudo), do tamanho das frases (longas e discursivas, ou curtas e irregulares), de andamento (rápido ou lento), de articulação (legato ou stacatto) etc (Swanwick; Taylor, 1982; Swanwick, 1994). Motivos se encadeiam a outros motivos, formando frases e seções em sequências de contrastes graduais ou súbitos, que confirmam ou quebram expectativas que construímos no decorrer da escuta (França, 2003). É possível observar esses pequenos milagres perceptivos e psicológicos ocorrendo até mesmo em uma pequena canção como esta, chamada Garimpeiro (para imprimir a partitura, clique no link lá embaixo, ao final da página; para ouvir a gravação, clique aqui: http://dl.dropbox.com/u/15280243/Garimpeiro.wma; vozes: Nathalia Assunção, Rodrigo Coelho e Luiz Enrique).
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GARIMPEIRO
Cecília Cavalieri França
(Lê-lê-lê-lê-lê-lê-lê-lê-lê-ô)
Garimpeiro que não é de ferro quer encontrar
um bocadinho d'ouro pra descansar
Garimpeiro pela noite adentro vai batear
Ouro maior está no coração
um bocadinho d'ouro pra descansar
Garimpeiro pela noite adentro vai batear
Ouro maior está no coração
A introdução começa com uma percussão de efeito, que sugere sons de água, e com um som de violão melancólico, contemplativo. Aos poucos, o arranjo vai agregando elementos rítmicos e melódicos que aparecerão adiante, antecipando-os. Surge o motivo sincopado “ré-dó-mi-ré”, que é repetido quatro vezes, anunciando o tema. Ele é marcado pela entrada das duas vozes, do acompanhamento do piano e da moringa. O ritmo é sincopado; a dinâmica, forte. Os vocalizes lembram cantos ancestrais, reminiscentes de um possível cativeiro. A voz feminina realiza duas frases em pergunta e resposta (antecedente e consequente), enquanto a voz masculina repete o mesmo motivo quatro vezes, como um ostinato. As duas vozes se dissolvem em direção ao final da seção.
Na seção B, volta o clima melancólico da introdução. Entra o solo do garimpeiro, que entoa um recitativo em tom quase religioso, num ritmo flutuante cheio de lamento. A melodia é modal e tem contornos ascendentes e descendentes, desenhando duas frases. Ao final da primeira, aparecem o violão e a percussão de efeito, relembrando o tema da introdução. A segunda frase termina com o piano tocando o motivo “ré-dó-mi-ré”, transição para o retorno da seção A, agora modificada (A’). Surge uma modulação súbita, sem preparação, para um tom abaixo, e em seguida há o retorno para o tom original. O final também é súbito, com um corte seco.
Possibilidades didáticas
Garimpeiro é uma canção simples mas que articula inúmeros elementos musicais, favorecendo a vivência e o aprendizado de diversos conteúdos em um contexto musicalmente rico e expressivo. A variedade de elementos é realçada pelo contraste entre as seções A e B.
Quanto aos aspectos rítmicos, temos o pulso bem marcado na seção A e flutuante na seção B, ao sabor do lamento do garimpeiro. O mesmo vale para o apoio, ou acento métrico, também nítido na seção A e evasivo na seção B. O emprego de padrões rítmicos diferentes (contratempo e síncope na primeira seção e colcheias na segunda) realça o contraste de caráter e de fluxo rítmico entre as duas seções. Também se destacam o anacruse do tema (acéfalo) e o ostinato da voz masculina. Os elementos rítmicos podem ser realizados por instrumentos e batimentos corporais, em ação combinada entre pés e palmas.
O aspecto melódico apresenta grandes contrastes entre as duas seções. Na primeira, prevalecem notas repetidas dentro de uma extensão pequena, de maneira mais angulosa. As duas vozes cantam ora em quintas paralelas, ora em movimento contrário. Na sessão B, o garimpeiro canta solo; a melodia sobe e desce mais livremente e “redonda”. Do ponto de vista harmônico, a base da primeira seção é apenas o acorde de ré dórico, que permanece como um pedal; na segunda, o violão passeia dentro do ambiente modal.
Diferenças de textura (mais densa, mais leve), articulação (stacatto, legato) e mudanças de timbres também delineiam as seções.
Vários elementos podem ser trabalhados antes da apresentação da canção. Elementos do ritmo (pulso, apoio, compasso binário, contratempo, síncope, padrões rítmicos; pulso flutuante, acelerando, rallentando) podem ser explorados com batimentos corporais, arranjos com instrumentos de percussão, ação combinada, leitura, escrita e improvisação. Os alunos podem inventar (ou reproduzir) ostinatos vocais ou instrumentais.
Os elementos relativos às alturas (movimento ascendente, descendente, paralelo, contrário; grave e agudo; duas vozes, graus conjuntos, padrões escalares; modo dórico; pedal) podem ser trabalhados com vocalizes, treinamento auditivo e solfejos, escritos em notação gráfica e/ou convencional. Os alunos podem se alternar cantando as duas vozes. O ambiente modal pode ser apreendido por comparação com o tonal, a partir da escuta e da entoação de ambos.
A dinâmica segue o caráter expressivo das seções, variando do piano ao forte. O mesmo ocorre com as variações de textura e densidade (mais rarefeito, mais denso, solo x tutti). O trabalho com os timbres passa pela identificação dos mesmos e pela criação de arranjos e de sonoplastia. Os alunos podem escolher instrumentos adequados aos diferentes componentes sugeridos pelo tema do garimpo, como picareta, bateia, água; também vale criar climas expressivos contrastantes utilizando os mesmos instrumentos, a exemplo da moringa, que realiza percussão rítmica na seção A e de efeito na seção B. Se houver instrumentos melódicos, como xilofone ou flauta doce, estes podem realizar os baixos, bordões em quintas, por exemplo, e as melodias.
Elementos cênicos e históricos podem ser explorados a partir da letra da canção, da representação com personagens e trilha incidental (um coro de “escravos” e um solo de garimpeiro; sons de bateias e machadinhas). Discussões sobre o trabalho dos garimpeiros, noções de ecologia, preservação ambiental, qualidade e segurança no trabalho devem ser pontuadas. Vale também uma digressão para a obra de pintores como Portinari, Debret, Rugendas e outros, que retrataram cenas históricas.
O caráter expressivo deve ser enfatizado por meio do fraseado e da agógica, incluindo a percepção do significado das fermatas. O contraste entre o caráter enérgico e o melancólico deve ser explicitado. Os elementos que conferem ao estilo o toque regional, como a síncope e o modalismo, devem ser valorizados. Essa abordagem pode ser complementada pela apreciação de músicas modais, de caráter ancestral, que falem da escravidão, da labuta dos trabalhadores, bem como de músicas da MPB, como Canto de Ossanha e Berimbau, de Vinícius de Moraes e Baden Powell.
A estrutura das frases e seções, a forma ABA’, o ostinato, a relação melodia e acompanhamento, ou figura e fundo, são bastante nítidos. Pode-se colocar: como as partes são conectadas? Qual a relação entre a introdução e a parte central? Qual a diferença entre as seções A e A’? Qual o impacto da modulação? Qual a relação das partes com o todo? Qual o impacto expressivo da modulação direta? O que dizer da relação entre letra e música?
Enfim, por meio de atividades de performance vocal, corporal e instrumental (prática em conjunto coral e instrumental), apreciação, criação, improvisação e arranjo, inúmeros conceitos são aprendidos e vivenciados em um contexto musicalmente rico e significativo.
O aprendizado mais importante do ponto de vista musical é a compreensão de como os materiais sonoros são organizados para criar nuances de caráter em gestos expressivos que, por sua vez, articulam a forma musical (Swanwick, 1994). Sons se tornam música, incorporam expressividade, fazem brotar impressões, climas, sensações, emoções. Sugerem ansiedade ou monotonia, hesitação ou completude, confirmam ou quebram nossa expectativa. Pequenos milagres.
Referências:
FRANÇA, Cecilia Cavalieri. O som e a forma, do gesto ao valor. In: Hentschke e Del Ben (eds.). Ensino de Música: propostas para pensar e agir em sala de aula. Editora Moderna, 2003.
Referências:
FRANÇA, Cecilia Cavalieri. O som e a forma, do gesto ao valor. In: Hentschke e Del Ben (eds.). Ensino de Música: propostas para pensar e agir em sala de aula. Editora Moderna, 2003.
SWANWICK, Keith. Musical knowledge: intuition, analysis and music education. London: Routledge, 1994.
SWANWICK, Keith; TAYLOR, Dorothy. Discovering music: developing the music curriculum in secondary schools. London: Batsford Academic and Educational Ltd., 1982.
Um comentário:
Oi, querida, como sempre nos ensinando!! Depois de alguns momentos tumultuados estou de volta a BH e gostaria de voltar a estudar, participar e me envolver com a musica e seus ensinamentos nesta cidade maravilhosa. Sempre tenho você como uma referência em meus estudos e nas preparações para um bom trabalho. Passei para te desejar felicidades e disser que seu blog esta lindo e sem sombra de dúvida cheio de música!!! Um grande abraço!! Maria Luisa.
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